domingo, 9 de outubro de 2011

Nexo

Progressiva Construção Da Loucura” - Parte 1 primeiro texto. 2011 - Agosto 11/12/13
[Likich Preinen Kach]
Anderson Patrício




    Maren paralisou, como uma máquina quebrada. Tentou respirar pausadamente, mas seu coração, acelerado, dava indícios de que tinha a funcionalidade seriamentecomprometida. Um ataque cardíaco se desenhava, claramente. Mas ele tinha que abrir aquela porta e extrair do que visse, sua última idéia no mundo dos vivos. E assim o fez: rastejando como um verme, subiu os degraus à duro custo, e abriu a porta.

N

    Mas não era isso que chamava a atenção naquela região longínqua...
    Um homem, cujo nome não se sabe, desde criança, falava sem nexo algum. Não que estivesse fora da idéia; tinha noção do que queria informar, mas as palavras se apresentavam fora de ordem, como se fossem embaralhadas em sua cabeça antes de ganharem os ouvidos dos interlocutores. Em decorrência de tal, evitava-se despendido de palavras com semelhante figura; gasto inútil de conjugações orais com análogo indivíduo; subtração de tempo, paciência e lógica com tão singular criatura; enfim, o deficitário lingüístico era evitado como praga e sua singular falta de concordância, antes de repreendida, censurada drasticamente, era dispensada explicitamente.
    Milhares de possibilidades foram levantadas; tais como: “Foi ensinado desse modo, por isso não consegue mais inverter a ordem das palavras.” “Pretende debochar de nós.” “É doente mental”. “Está possuído por uma entidade.” “Fala outra língua.” “Entende as coisas de maneira dispersa, por isso, fala dispersamente.”
    Após dizerem todas essas frases a respeito do homem, em tom de certeza absoluta, ainda ficavam pensando a respeito do caso.

II

    Kertz, que havia morado numa grande metrópole e tinha uma visão mais ampla das coisas, decidiu que descobriria as razões reais que levavam o homem que falava fora de ordem a se portar de tal maneira esdrúxula, e para tanto, decidiu que estudaria todos os pormenores de sua personalidade. Decidiu que moraria com ele, sob mesmo teto, sem qualquer outra intenção que não fosse a busca por resoluções. Encheu-se de anotações diversas, de apontamentos especulativos, de deduções absurdas, sem jamais escrever algo que tivesse algum fundo científico, ou mesmo que coadunasse com a realidade. Então, meses depois, entorpecido pelas possibilidades diversas, e após tanto conversar com o homem que falava fora de ordem, ele voltou ao convívio social, e quando se aproximou da população, disse:
    – Obter consegui êxito não.

N

    O alvoroço foi imenso: Apontaram para Kertz da maneira mais brusca possível. Ele estava contaminado! A convivência exaustiva com o homem que falava fora de ordem o tornou igual a ele! Entendia claramente o que lhe diziam, mas respondia sem fazer uso da ordem natural das palavras! Estava provado! Era uma doença! Transmissível! Uma enfermidade terrível, abominável, perigosa, que deveria ser expurgada definitivamente! Deveriam matar o homem, e Kertz também, assim, aquela anomalia lingüística seria extinta para sempre!
    Antes que todos corressem em direção aos alvos, e os apedrejassem até a morte, Maren interveio, e convenceu que a medida mais cabível era o isolamento. Deveriam isolar Kertz e o homem numa área mais afastada, proibindo ambos de se aproximar da sociedade sadia. Como justificativa para tamanha ordem, Maren citou um possível castigo divino, dizendo que poderiam ser punidos da maneira mais conveniente possível, como contraírem a doença de ambos, por exemplo, caso os matassem.
    Mesmo tendo certeza que a única maneira de ficar doente era tendo relação contínua com os dois contaminados, a população acatou a ordem de Maren, e os conduziu, proibindo-os de falar, para uma casa caindo aos pedaços, que serviria de hospital para a dupla.


III


    Os dias foram se passando, e apenas Maren ia até lá, sem dizer palavra, levar água e comida para os dois. Maren sequer os via. Apenas deixava os mantimentos e saia apressadamente, ouvindo apenas, uma vez ou outra, os ruídos provenientes da locomoção de algum dos dois, do interior da casa até a parte de fora.
    Mas aquilo estava se tornando um inconveniente! Maren sentia-se um serviçal, levando comida para seu patrão; um entregador de recados grosseiro e sem vida própria, que se limita a levar correspondências para as pessoas, e sequer sabe o que elas sentem após ler as frases; um robô programado para realizar sempre o mesmo serviço, sem nem saber o que está fazendo; ou que seja: um religioso que dá amparo aos leprosos segregados, afundados em lascívia e promiscuidade! Maldita idéia teve! Deveria ter deixado o povo avançar sobre a dupla e só parar com o açoite quando houvesse duas sombras imóveis, afogadas em sangue! Mas fora misericordioso! Idiota! Por trás de que sentimento surgiu a opção de enclausurá-los?
    Baseado em que fundamento? Em que plano para o futuro?
    Castigo divino? Óbvio que não! O castigo já estava lá, representado pela dupla de loucos! Agora, com a população livre da culpa, e os dois vivos, o castigo caiu sobre ele próprio! Bondoso ser, que ia, duas vezes por dia, levar o necessário para que vivessem e se dedicassem sabe-se-lá a que atividade, com certeza mais interessante do que sair pra lá e pra cá, carregando algo que lhes matasse a fome!
   Estava decidido: Maren iria parar, definitivamente. Sairia, fingindo levar as provisões, mas no caminho se livraria delas, e deixaria os recipientes sempre vazios, até que morressem de inanição.

N

    Passados exatos vinte e três dias de claustro, sendo destes, cinco desprovidos de água e qualquer tipo de material orgânico digerível, Maren foi parado por um morador, que disse:
    – Três pessoas sumiram, misteriosamente. Acredita-se que isso tenha alguma ligação com os loucos. Reunimo-nos e chegamos a uma decisão: Você deve entrar na casa, e averiguar se a suspeita é mesmo verídica.

N

    Era só o que faltava! Maren foi encarregado sem que sua opinião fosse considerada! Teria que cumprir a ordem do povo! Entrar no hospício e saber se as pessoas desaparecidas estavam lá! Logo agora, que tinha parado de alimentar os dois! Mais parecia uma conspiração! É claro!    Armaram tudo contra ele, já conhecendo sua personalidade, para que ele seguisse todos os passos planejados pelos mentores da conspiração, até que, achando ter algum domínio, logo caísse em abismo, vendo todo o resto da população rindo de sua cara, de sua fraqueza! Sujeito previsível, patético! Deveria ser devorado ao entrar no cubículo, para que sua burrice repugnante sumisse definitivamente! Mas, antes disso, ainda seria conduzido, como uma marionete! Esse era o objetivo de todos, desde o início.
     Por um instante, Maren chegou a pensar que não havia o homem que falava fora de ordem, ou mesmo que Kertz fosse apenas um ator, integrante da seita que o manipulava. Tudo, desde que Kertz foi morar com o homem, não passava de armação! Quem sabe, até o homem que falava fora de ordem fosse um ator também!
    O domínio indireto! Tal hedionda e eficaz prática que controla os corpos previsíveis! Essa era a resposta!

N

    Enquanto caminhava até a casa, pensou em postergar a ordem, e retornar. Mas estava ansioso demais... Um turbilhão de emoções se formou dentro de sua cabeça, e perante sua imagem. Seus braços estavam quentes, as pernas, trêmulas. Forte taquicardia o acometeu. Não era possível! O que será que encontraria dentro da casa? Os cinco, debochando de sua néscia personalidade? Estariam todos reunidos, saudáveis, conversando normalmente, e ao notarem a chegada de criatura tão desprezível, apontar-lhe-iam os dedos rígidos e soltariam estrondosas gargalhadas?
    Não! Pior: A casa estaria vazia, sem sinal algum de que alguém houvesse estado lá, e Maren enlouqueceria, invariavelmente debilitado após ter sido ludibriado por si próprio e por todos, e, sem mais ter noção algum da realidade, falaria quaisquer palavras sem nexo, antes de se atirar contra a base de qualquer precipício!
     Ora! Poderiam estar mortos! Os cinco, ou apenas os dois! Aquilo poderia ser real! Dois homens que falam fora de ordem, e três pessoas que sumiram por algum motivo difícil de compreender, mas que, mesmo assim, não poderia ser tão perturbador assim!
     Maren estava exagerando! Isso! Pensou demais acerca de inúmeras probabilidades e acabou confuso! Logo entraria na casa e encontraria a resolução: Os dois homens famintos e desidratados, mas vivos, e três pessoas curiosas! Essa sim era a lógica! Era isso que encontraria, sem margens pra qualquer tipo de especulação mirabolante.


IV


    Maren havia chegado: A casa estava logo ali, em sua frente. O silêncio reinava, absoluto. Uma grande sensação de vazio e finalização o atacava. Nem sabia definir como se sentia. Parecia o último dia de sua vida. Não tinha noção do que encontraria lá dentro. Novamente, as possibilidades se manifestaram, agudas, latentes. Teve vontade de desaparecer pra sempre, pra jamais ter conhecimento da verdade. Mas, que verdade? Tudo era uma grande ilusão! Tudo fruto de sua cabeça! Um pesadelo horrendo e irreversível! Qualquer coisa diante de seus olhos e a impressão seria a mesma: Aquilo não era real! Tão logo pensasse dessa forma, outra realidade surgiria, talvez a inversa da anterior!
    Maren paralisou, como uma máquina quebrada. Tentou respirar pausadamente, mas seu coração, acelerado, dava indícios de que tinha a funcionalidade seriamente comprometida. Um ataque cardíaco se desenhava, claramente. Mas ele tinha que abrir aquela porta e extrair do que visse, sua última idéia no mundo dos vivos. E assim o fez: rastejando como um verme, subiu os degraus à duro custo, e abriu a porta.

V

    Era um surto, uma epidemia! Todos falando fora de ordem. Começou com um homem, depois outro... Logo, toda a população, exceto Maren! Era algo realmente grave: Ninguém mostrava indício de que sabia que estava verbalizando equivocadamente! Era algo sério, que tinha que ser combatido imediatamente.
    Então, julgando-se um deus, único ser saudável, escolhido dentre centenas, ele não pensou duas vezes: Esperou o momento em que estavam dormindo, sob o mesmo teto, numa comemoração religiosa, e ateou fogo em todos.
    Enquanto os corpos carbonizados se debatiam de sofrimento, Maren, por algum instante, percebeu que o que eles diziam fazia sentido.

N

    Um homem tinha um problema esquisito: falava sem nexo algum. Não que estivesse fora da idéia; tinha noção do que queria informar, mas as palavras se apresentavam fora de ordem, como se fossem embaralhadas em sua cabeça antes de ganharem os ouvidos dos interlocutores. Em decorrência de tal, evitava-se despendido de palavras com semelhante figura; gasto inútil de conjugações orais com análogo indivíduo; subtração de tempo, paciência e lógica com tão singular criatura; enfim, o deficitário lingüístico era evitado como praga e sua singular falta de concordância, antes de repreendida, censurada drasticamente, era dispensada explicitamente.

N

    Kertz, um homem que havia morado numa grande metrópole e tinha uma visão mais ampla das coisas, com pena do pobre coitado que falava fora de ordem - anônimo desde o princípio de sua existência -, pensou rapidamente e decidiu que a partir daquele dia o chamaria de Maren.


fim



Por algum motivo desconhecido, pessoas especiais aparecem na nossa vida, todas elas nos ensinam alguma coisa, seja boa ou ruim. Na verdade, até mesmo as que acabamos criando algum conflito também nos passam experiências. 
Com o Anderson Patrício, autor do conto acima, aprendo constantemente coisas que só me tem feito crescer. Passo a observar pontos diferentes do mesmo fato. 


 Seja filosofando a sociedade ou falando simplesmente sobre crenças, costumes, ações e sentimentos humanos, trocamos experiências que são difíceis de descrever.
Somos avessos em muitas coisas, mas essa cumplicidade, ganhada com o tempo, me faz admirar, cada vez mais, esse ser tão complexo. 
Obrigada por tudo que me ensina, 7. Esse número sempre me deu sorte.

"Cada pessoa que passa em nossa vida, passa sozinha, porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra! Cada pessoa que passa em nossa vida passa sozinha e não nos deixa só porque deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós. Essa é a mais bela responsabilidade da vida e a prova de que as pessoas não se encontram por acaso".
                                                                                                                                   Charles Chaplin